sexta-feira, 27 de maio de 2016

GAETANINHO, Alcântara Machado

GAETANINHO
Alcântara Machado

- Xi, Gaetaninho, como é bom!
Gaetaninho ficou banzando bem no meio da rua. O Ford quase o derrubou e ele não viu o Ford. O carroceiro disse um palavrão e ele não ouviu o palavrão.
– Eh! Gaetaninho Vem pra dentro.
Grito materno sim : até filho surdo escuta. Virou o rosto tão feio de sardento, viu a mãe e viu o chinelo.
– Subito!
Foi-se chegando devagarinho, devagarinho. Fazendo beicinho. Estudando o terreno. Diante da mãe e do chinelo parou. Balançou o corpo. Recurso de campeão de futebol. Fingiu tomar à direita. Mas deu meia volta instantânea e varou pela esquerda porta adentro.
Eta salame de mestre!
              Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde. De automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro. De enterro ou de casamento. Por isso mesmo o sonho de Gaetaninho era de realização muito difícil. Um sonho.
O Beppino por exemplo. O Beppino naquela tarde atravessara de carro a cidade. Mas como? Atrás da Tia Peronetta que se mudava para o Araçá. Assim também não era vantagem.
Mas se era o único meio? Paciência.
Gaetaninho enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.
Que beleza , rapaz! Na frente quatro cavalos pretos empenachados levavam a Tia Filomena para o cemitério. Depois o padre. Depois o Savério noivo dela de lenço nos olhos. Depois ele. Na boléia do carro. Ao lado do cocheiro. Com a roupa marinheira e o gorro branco onde se lia: ENCOURAÇADO SÃO PAULO.
Não. Ficava mais bonito de roupa marinheira mas com a palhetinha nova que o irmão lhe trouxera da fábrica. E ligas pretas segurando as meias. Que beleza, rapaz! Dentro do carro o pai, os dois irmãos mais velhos (um de gravata vermelha, outro de gravata verde) e o padrinho Seu Salomone. Muita gente nas calçadas, nas portas e nas janelas dos palacetes, vendo o enterro. Sobretudo admirando o Gaetaninho.
Mas Gaetaninho ainda não estava satisfeito. Queira ir carregando o chicote. O desgraçado do cocheiro não queria deixar. Nem por um instantinho só.
Gaetaninho ia berrar mas a Tia Filomena com mania de cantar o “Ahi, Mari!” todas as manhãs o acordou.
Primeiro ficou desapontado. Depois quase chorou de ódio.
Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho. Tão forte que ele sentiu remorsos. E para sossego da família alarmada com o agouro tratou logo de substituir a tia por outra pessoa numa nova versão de seu sonho. Matutou, matutou, e escolheu o acendedor da Companhia de Gás, seu Rubinho, que uma vez lhe deu um cocre danado de doído.
Os irmãos (esses) quando souberam da história resolveram arriscar de sociedade quinhentão no elefante. Deu a vaca. E eles ficaram loucos de raiva por não haverem logo adivinhado que não podia deixar de dar a vaca mesmo.

O jogo na calçada parecia de vida ou morte. Muito embora Gaetaninho não estava ligando.
– Você conhecia o pai do Afonso, Beppino?
– Meu pai deu uma vez na cara dele.
– Então você não vai amanhã no enterro. Eu vou!
O Vicente protestou indignado:
– Assim não jogo mais ! O Gaetaninho está atrapalhando!
Gaetaninho voltou para o seu posto de guardião. Tão cheio de responsabilidades.
O Nino veio correndo com a bolinha de meia. Chegou bem perto. Com o tronco arqueado, as pernas dobradas, os braços estendidos, as mãos abertas, Gaetaninho ficou pronto para a defesa.
– Passa pro Beppino!
Beppino deu dois passos e meteu o pé na bola. Com todo o muque. Ela cobriu o guardião sardento e foi parar no meio da rua.
– Vá dar tiro no inferno!
– Cala a boca, palestrino!
– Traga a bola!
Gaetaninho saiu correndo. Antes de alcançar a bola um bonde o pegou. Pegou e matou.
No bonde vinha o pai de Gaetaninho.
Agurizada assustada espalhou a notícia na noite.
– Sabe o Gaetaninho?
– Que é que tem?
– Amassou o bonde!
A vizinhança limpou com benzina suas roupas domingueiras.
Às dezesseis horas do dia seguinte saiu um enterro da Rua do Oriente e Gaetaninho não ia na boleia de nenhum dos carros do acompanhamento. Lá no da frente dentro de um caixão fechado com flores pobres por cima. Vestia a roupa marinheira, tinha as ligas, mas não levava a palhetinha.
Quem na boleia de um dos carros do cortejo mirim exibia soberbo terno vermelho que feria a vista da gente era o Beppino.

ESTUDO DO TEXTO

01. Qual era o sonho de Gaetaninho?

02. Segundo o texto, por que o sonho de Gaetaninho era de difícil realização?

03. Apesar de Beppino ter atravessado de carro a cidade, por que não era vantagem, segundo o texto?

04. Por que Gaetaninho ficou tão desapontado ao ser acordado pelo canto da Tia Filomena?

05. Por que Tia Filomena teve um ataque de nervos quando soube do sonho de Gaetaninho?

06. Qual a atitude de Gaetaninho diante da reação da tia?

07. Qual seria a provável razão para Gaetaninho escolher seu Rubinho para o lugar da tia no sonho?

08. Como a família reagiu diante do sonho de Gaetaninho?

09. Por que Vicente acusa Gaetaninho de estar atrapalhando o jogo?

10. O que aconteceu com Gaetaninho ao voltar para o jogo?

11. Qual a condição socioeconômica de Gaetaninho? Comprove com elementos do texto ou trechos.

12. Qual é o foco narrativo do conto e qual o tipo de narrador?





GABARITO
01. Andar de automóvel.
02. Porque a ralé quando muito andava de bonde e automóvel ou carro só mesmo em dia de enterro ou casamento.
03. Porque ele tinha ido atrás da Tia Peronetta acompanhando seu enterro até o cemitério do Araçá.
04. Porque ele estava sonhando com que estava andando de automóvel sendo admirado pelas pessoas que estavam nas calçadas.
05. Porque no sonho Gaetaninho andava de automóvel acompanhando o enterro dela, o que poderia ser um mau agouro.
06. Gaetaninho passa a contar o sonho numa nova versão escolhendo o acendedor da Companhia de gás, seu Rubinho, para ser o defunto do sonho.
07. Porque seu Rubinho uma vez lhe deu um cocre danado de doído.
08. A família ficou alarmada e os irmãos aproveitaram para apostar no bicho.
09. Porque ele estava conversando com Beppino sobre o enterro do pai do Afonso.
10. Foi atropelado pelo bonde quando correu para pegar a bola de meia arremessada que foi parar no meio da rua.
11. Gaetaninho fazia parte da classe baixa, operária. “Ali na Rua Oriente a ralé quando muito andava de bonde.” O personagem jogava futebol com bola de meia, o irmão trabalhava numa fábrica, os irmãos jogavam no bicho e as flores que cobriam o caixão de Gaetaninho eram pobres.

12. O foco narrativo é em terceira pessoa e o tipo de narrador é observador onisciente pois conhece os pensamentos e intenções íntimas dos personagens.


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quarta-feira, 25 de maio de 2016

BARCA BELA, Almeida Garret

 

BARCA BELA
Almeida Garrett

Pescador da barca bela, 
Onde vais pescar com ela. 
Que é tão bela, 
Oh pescador? 

Não vês que a última estrela 
No céu nublado se vela? 
Colhe a vela, 
Oh pescador! 

Deita o lanço com cautela, 
Que a sereia canta bela... 
Mas cautela, 
Oh pescador! 

Não se enrede a rede nela, 
Que perdido é remo e vela, 
Só de vê-la, 
Oh pescador. 

Pescador da barca bela, 
Inda é tempo, foge dela, 
Foge dela 
Oh pescador! 

Estudo do texto

01. Na primeira estrofe do poema temos
a) um pedido
b) uma sugestão
c) um convite
d) um alerta

02. Sobre qual perigo o eu lírico se refere no poema?
a) as condições do mar
b) ao canto da sereia
c) as condições do tempo
d) a situação do barco

03. São argumentos apresentados pelo eu lírico para que o pescador não se arrisque, exceto
a) “Não vês que a última estrela/ no céu nublado se vela?”
b) “Que a sereia canta bela...”
c) “Deita o lanço com cautela”
d) “Não se enrede a rede nela/ Que perdido é remo e vela”

04. De acordo com o contexto, qual o significado da palavra destacada no verso “Não enrede a rede nela”?
a) juntar
b) conspirar
c) aproximar
d) envolver

05.  Assinale V para verdadeiro e F para falso, de acordo com a leitura do poema.
I. (   ) A Barca bela é um símbolo da sedução e dos vários perigos que o homem pode enfrentar no decorrer da vida.
II. (   ) Existe uma atração do pescador pelo mar apesar dos perigos.
III. (   ) É preferível arriscar-se no mar mesmo com todos os perigos.
IV. (   ) O eu lírico faz perguntas ao pescador esperando por respostas.

a) F – V – F – V
b) V – F – V – F
c) V – V – V – F
d) V – V – F - F

06. Sobre as rimas, podemos dizer que o poema
a) apresenta rimas emparelhadas.
b) apresenta rimas interpoladas.
c) apresenta rimas encadeadas.
d) tem versos brancos, sem rimas.

07. Chamamos de diáfora a repetição da mesma palavra com sentido diferente. Ocorre diáfora no texto com o termo
a) bela
b) vela
c) barca
d) pescador



GABARITO

1. d / 2. b / 3. c/ 4. d / 5. d / 6. a / 7. b

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quinta-feira, 19 de maio de 2016

O GUARDADOR DE REBANHOS, de Alberto Caeiro

O GUARDADOR DE REBANHOS
               POEMA X
                                             Alberto Caeiro
"Olá, guardador de rebanhos,
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?"
"Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?"
"Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram."
"Nunca ouviste passar o vento.
O vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti."

Estudo do texto

01. Alberto Caeiro era um dos heterônimos criado por Fernando Pessoa. De acordo com seu criador, Caeiro é o poeta da natureza e o mestre dos demais heterônimos. Qual elemento relacionado a natureza faz parte do poema?

02. O poema tem a estrutura de um diálogo. Quem são os interlocutores desse diálogo?

03. Que estrofes correspondem à fala de cada interlocutor?

04. De acordo com a leitura do poema, qual dos dois interlocutores se relaciona com o mundo concreto e não vê nada além do que aquilo que realmente se mostra?

05. Caeiro é o poeta das coisas reais, que são o que são e como são. Que verso do poema comprova essa afirmação?

06. De acordo com o conteúdo do poema, assinale V para verdadeiro e F para falso.

a. (   ) Para o Guardador de Rebanhos a relação com a realidade (simbolizada pelo vento) passa por sentir apenas a realidade.
b. (   ) Os pontos de vistas dos dois interlocutores são semelhantes.
c. (   ) Para o interlocutor do Guardador de Rebanhos, a realidade (vento) é muito mais do que aquilo que se sente.
d. (   ) Para o Guardador de Rebanhos, a realidade (vento) é porta aberta para a memória e a saudade.
e. (   ) Para o Guardador de Rebanhos só existe a verdade do momento.


Respostas:
01. O vento
02. O Guardador de Rebanhos e alguém com quem ele se cruza no caminho.
03. A primeira e a terceira estrofes correspondem a pessoa que encontra com o guardador de rebanhos e a segunda e a quarta estrofe correspondem ao Guardador de Rebanhos.
04. O Guardador de Rebanhos.
05. “O vento só fala do vento”
06.
a) V
b) F
c) V
d) F
e) V

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quarta-feira, 18 de maio de 2016

POLICARPO QUARESMA, de Lima Barreto

POLICARPO QUARESMA
Lima Barreto

 Capítulo I - A lição de violão
(fragmento)

               Vivendo em casa própria e tendo outros rendimentos além do seu ordenado, o Major Quaresma podia levar um trem de vida superior aos seus recursos burocráticos, gozando, por parte da vizinhança, de consideração e respeito de homem abastado.
               Não recebia ninguém, vivia num isolamento monacal, embora fosse cortês com os vizinhos que o julgavam esquisito e misantropo. Se não tinha amigos na redondeza, não tinha inimigos, e a única desafeição que merecera, fora a do doutor Segadas, um clínico afamado no lugar, que não podia admitir que Quaresma tivesse livros: “Se não era formado, para quê? Pedantismo!”
               O subsecretário não mostrava os livros a ninguém, mas acontecia que, quando se abriam as janela da sala de sua livraria, da rua poder-se-iam ver as estantes pejadas de cima a baixo.
Eram esses os seus hábitos; ultimamente, porém, mudara um pouco; e isso provoca comentários no bairro. Além do compadre e da filha, as únicas pessoas que o visitavam até então, nos últimos dias, era visto entrar em sua casa, três vezes por semana e em dias certos, um senhor baixo, magro, pálido, com um violão agasalhado numa bolsa de camurça. Logo pela primeira vez o caso intrigou a vizinhança. Um violão, em casa tão respeitável! Que seria?
E, na mesma tarde, uma das mais lindas vizinhas do major convidou uma amigas, e ambas levaram um tempo perdido, de cá para lá, a palmilhar o passeio, esticando a cabeça, quando passavam diante da janela aberta do esquisito subsecretário.
Não foi inútil a espionagem. Sentado no sofá, tendo ao lado o tal sujeito, empunhando o “pinho” na posição de tocar, o major, atentamente, ouvia: “Olhe, major, assim”. E as cordas vibravam vagarosamente a nota ferida; em seguida, o mestre aduzia: “É ‘ré’, aprendeu?”
Mas não foi preciso pôr na carta; a vizinhança concluiu logo que o major aprendia a tocar violão. Mas que coisa? Um homem tão sério metido nessas malandragens!
Uma tarde de sol – sol de março, forte e implacável – aí pelas cercanias das quatro horas, as janelas de uma erma rua de São Januário povoaram-se rápida e repentinamente, de um e de outro lado. Até da casa do general vieram moças à janela! Que era? Um batalhão? Um incêndio? Nada disto: o Major Quaresma, de cabeça baixa, com pequenos passos de boi de carro, subia a rua, tendo debaixo do braço um violão impudico.
É verdade que a guitarra vinha decentemente embrulhada em papel, mas o vestuário não lhe escondia inteiramente as formas. À vista de tão escandaloso fato, a consideração e o respeito que o Major Policarpo Quaresma merecia nos arredores de sua casa, diminuíram um pouco. Estava perdido, maluco, diziam. Ele, porém, continuou serenamente nos seus estudos, mesmo porque não percebeu essa diminuição.
Quaresma era um homem pequeno, magro, que usava pince-nez, olhava sempre baixo, mas, quando fixava alguém ou alguma cousa, os seus olhos tomavam, por detrás das lentes, um forte brilho de penetração e era como se ele quisesse ir à alma da pessoa ou da cousa que fixava.
               Contudo, sempre os trazia baixos, como se se guiasse pela ponta do cavanhaque que lhe enfeitava o queixo. Vestia-se sempre de fraque, preto, azul, ou de cinza, de pano listrado, mas sempre de fraque, e era raro que não se cobrisse com uma cartola de abas curtas e muito alta, feita segundo um figurino antigo de que ele sabia com precisão a época.           
Quando entrou em casa, naquele dia, foi a irmã quem lhe abriu a porta, perguntando:
– Janta já?
– Ainda não. Espere um pouco o Ricardo que vem jantar hoje conosco.
– Policarpo, você precisa tomar juízo. Um homem de idade, com posição, respeitável, como você é, andar metido com esse seresteiro, um quase capadócio – não é bonito!
O major descansou o chapéu-de-sol – um antigo chapéu-de-sol, com a haste inteiramente de madeira, e um cabo de volta, incrustado de pequenos losangos de madrepérola – e respondeu:
– Mas você está muito enganada, mana. É preconceito supor-se que todo o homem que toca violão é um desclassificado. A modinha é a mais genuína expressão da poesia nacional e o violão é o instrumento que ela pede. Nós é que temos abandonado o gênero, mas ele já esteve em honra, em Lisboa, no século passado, com o Padre Caldas, que teve um auditório de fidalgas. Beckford, um inglês notável, muito o elogia.
– Mas isso foi em outro tempo; agora...
– Que tem isso, Adelaide? Convém que nós não deixemos morrer as nossas tradições, os usos genuinamente nacionais...
– Bem, Policarpo, eu não quero contrariar você; continue lá com as suas manias.
............
A razão tinha que ser encontrada numa disposição particular de seu espírito, no forte sentimento que guiava sua vida. Policarpo era patriota. Desde moço, aí pelos vinte anos, o amor da Pátria tomou-o todo inteiro. Não fora o amor comum, palrador e vazio; fora um sentimento sério, grave e absorvente. Nada de ambições políticas ou administrativas; o que Quaresma pensou, ou melhor: o que o patriotismo o fez pensar, foi um conhecimento inteiro do Brasil, levando-o a meditações sobre os seus recursos, para depois então apontar os remédios, as medidas progressivas, com pleno conhecimento de causa.

Estudo do texto

01. Identifique no texto características físicas e psicológicas do Major Quaresma.

02. Onde se ambienta a ação do trecho lido?

03. Que novidade rompe a rotina mantida pelo major?

04. O que garante a Quaresma o prestígio que ele goza em seu bairro, apesar de ser esquisitão?

05. Em que momento o prestígio sofre um abalo? Por quê?

06. Como reagiram os vizinhos ao verem o major carregando um violão?

07. Por que Quaresma decidiu estudar violão? O que essa decisão mostra sobre sua personalidade?

08. Relacione as palavras do texto com o seu significado.

(A) misantropo   (B) pejadas  (C) palmilhar  (D) aduzia  (E)impudico  (F) capadócio

(   ) obsceno
(   ) a quem aborrece a companhia humana
(   )trapaceiro
(   ) percorrer
(   ) ocupar sem deixar espaço


Respostas:


01. Físicas: pequeno, magro, usava pince-nez, tinha cavanhaque e usava fraque.
  Psicológicas: excêntrico, metódico, esquisito, misantropo, sério e gostava de ler livros.
02. Na casa do major, na rua São Januário.
03. As aulas de violão.
04. Seu bem-estar econômico o transforma numa figura respeitável.
05. Quando começa a ter aulas de violão, porque na época havia forte preconceito contra esse instrumento musical, considerado coisa de malandro.
06. Provocou uma reação coletiva de espanto e reprovação.
07. Porque aprender significava não deixar morrer as nossas tradições, os usos genuinamente nacionais. Seu aprendizado é um ato de patriotismo.
08.
(E) obsceno
(A) a quem aborrece a companhia humana
(F) trapaceiro
(C) percorrer
(B) ocupar sem deixar espaço

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terça-feira, 17 de maio de 2016

CARMELA, de Alcântara Machado

Carmela
Alcântara Machado

     Dezoito horas e meia. Nem mais um minuto porque a madama respeita as horas de trabalho. Carmela sai da oficina. Bianca vem ao seu lado.
     A Rua Barão de Itapetininga é um depósito sarapintado de automóveis gritadores. As casas de modas (AO CHIC PARISIENSE, SÃO PAULO-PARIS, PARIS ELEGANTE) despejam nas calçadas as costureirinhas que riem, falam alto, balançam os quadris como gangorras.
     - Espia se ele está na esquina.
     - Não está.
     - Então está na Praça da República. Aqui tem muita gente mesmo.
     - Que fiteiro!
     O vestido de Carmela coladinho no corpo é de organdi verde. Braços nus, colo nu, joelhos de fora. Sapatinhos verdes. Bago de uva Marengo maduro para os lábios dos amadores.
     - Ai que rico corpinho!
     - Não se enxerga, seu cafajeste? Português sem educação!
     Abre a bolsa e espreita o espelhinho quebrado, que reflete a boca reluzente de carmim primeiro, depois o nariz chumbeva, depois os fiapos de sobrancelha, por último as bolas de metal branco na ponta das orelhas descobertas.
     Bianca por ser estrábica e feia é a sentinela da companheira.
      - Olha o automóvel do outro dia.
     - O caixa-d'óculos?
     - Com uma bruta luva vermelha.
     O caixa-d'óculos pára o Buick de propósito na esquina da praça.
     - Pode passar.
     - Muito obrigada.
     Passa na pontinha dos pés. Cabeça baixa. Toda nervosa.
     - Não vira para trás, Bianca. Escandalosa!
     Diante de Álvares de Azevedo (ou Fagundes Varela) o Ângelo Cuoco de sapatos vermelhos de ponta afilada, meias brancas, gravatinha deste tamanhinho, chapéu à Rodolfo Valentino, paletó de um botão só, espera há muito com os olhos escangalhados de inspecionar a Rua Barão de Itapetininga.
     - O Ângelo!
     - Dê o fora.
     Bianca retarda o passo.
     Carmela continua no mesmo. Como se não houvesse nada. E o Ângelo junta-se a ela. Também como se não houvesse nada. Só que sorri.
     - Já acabou o romance?
     - A madama não deixa a gente ler na oficina.
     - É? Sei. Amanhã tem baile na Sociedade.
     - Que bruta novidade, Ângelo! Tem todo domingo. Não segura no braço!
     - Enjoada!
     Na Rua do Arouche o Buick de novo. Passa. Repassa. Torna a passar.
     - Quem é aquele cara?
     - Como é que eu hei de saber?
     - Você dá confiança para qualquer um. Nunca vi, puxa! Não olha pra ele que eu armo já uma encrenca!
     Bianca rói as unhas. Vinte metros atrás. Os freios do Buick guincham nas rodas e os pneumáticos deslizam rente à calçada. E estacam.
     - Boa tarde, belezinha...
     - Quem? Eu?
     - Por que não? Você mesma...
     Bianca rói as unhas com apetite.
     - Diga uma cousa. Onde mora a sua companheira?
     - Ao lado de minha casa.
     - Onde é sua casa?
     - Não é de sua conta.
     O caixa-d'óculos não se zanga. Nem se atrapalha. É um traquejado.
     - Responda direitinho. Não faça assim. Diga onde mora.
     - Na Rua Lopes de Oliveira. Numa vila. Vila Margarida nº 4. Carmela mora com a família dela nº 5.
     - Ah! Chama-se Carmela... Lindo nome. Você é capaz de lhe dar um recado?
     Bianca rói as unhas.
     - Diga a ela que eu a espero amanhã de noite, às oito horas, na rua... na.... atrás da Igreja de Santa Cecília. Mas que ela vá sozinha, hein? Sem você. O barbeirinho também pode ficar em casa.
     - Barbeirinho nada! Entregador da Casa Clark!
     - É a mesma cousa. Não se esqueça do recado. Amanhã, às oito horas, atrás da igreja.
     - Vá saindo que pode vir gente conhecida.
   
      Também o grilo já havia apitado.
     - Ele falou com você. Pensa que eu não vi?
     O Ângelo também viu. Ficou danado.
     - Que me importa? O caixa-d'óculos disse que espera você amanhã de noite, às oito horas, no Largo Santa Cecília. Atrás da igreja.
     - Que é que ele pensa? Eu não sou dessas. Eu não!
     - Que fita, Nossa Senhora! Ele gosta de você, sua boba.
     - Ele disse?
     - Gosta pra burro.
     - Não vou na onda.
     - Que fingida que você é!
     - Ciao.
     - Ciao.

     Antes de se estender ao lado da irmãzinha na cama de ferro Carmela abre o romance à luz da lâmpada de 16 velas: Joana a Desgraçada ou A Odisséia de uma Virgem, fascículo 2º.
     Percorre logo as gravuras. Umas tetéias. A da capa então é linda mesmo. No fundo o imponente castelo. No primeiro plano a íngreme ladeira que conduz ao castelo. Descendo a ladeira numa disparada louca o fogoso ginete. Montado no ginete o apaixonado caçula do castelão inimigo de capacete prateado com plumas brancas. E atravessada no cachaço do ginete a formosa donzela desmaiada entregando ao vento os cabelos cor de carambola.
     Quando Carmela reparando bem começa a verificar que o castelo não é mais um castelo mas uma igreja o tripeiro Giuseppe Santini berra no corredor:
     - Spegni la luce! Subito! Mi vuole proprio rovinare questa principessa!
     E - raatá! - uma cusparada daquelas.

     - Eu só vou até a esquina da Alameda Glette. Já vou avisando.
     - Trouxa. Que tem?
     No Largo Santa Cecília atrás da igreja o caixa-d'óculos sem tirar as mãos do volante insiste pela segunda vez:
     - Uma voltinha de cinco minutos só... Ninguém nos verá. Você verá. Não seja má. Suba aqui.
     Carmela olha primeiro a ponta do sapato esquerdo, depois a do direito, depois a do esquerdo de novo, depois a do direito outra vez, levantando e descendo a cinta. Bianca rói as unhas.
     - Só com a Bianca...
     - Não. Para quê? Venha você sozinha.
     - Sem a Bianca não vou.
     - Está bem. Não vale a pena brigar por isso.
     - Você vem aqui na frente comigo. A Bianca senta atrás.
     - Mas cinco minutos só. O senhor falou...
     - Não precisa me chamar de senhor. Entrem depressa.
     Depressa o Buick sobe a Rua Viridiana.
     Só pára no Jardim América.

     Bianca no domingo seguinte encontra Carmela raspando a penugenzinha que lhe une as sobrancelhas com a navalha denticulada do tripeiro Giuseppe Santini.
     - Xi, quanta cousa pra ficar bonita!
     - Ah! Bianca, eu quero dizer uma cousa pra você.
     - Que é?
     - Você hoje não vai com a gente no automóvel. Foi ele que disse.
     - Pirata!
     - Pirata por quê? Você está ficando boba, Bianca.
     - É. Eu sei porquê. Piratão. E você, Carmela, sim senhora! Por isso é que o Ângelo me disse que você está ficando mesmo uma vaca.
     - Ele disse assim? Eu quebro a cara dele, hein? Não me conhece.
     - Pode ser, não é? Mas namorado de máquina não dá certo mesmo.
     Saem à rua suja de negras e cascas de amendoim. No degrau de cimento ao lado da mulher Giuseppe Santini torcendo a belezinha do queixo cospe e cachimba, cachimba e cospe.
     - Vamos dar uma volta até a Rua das Palmeiras, Bianca?
     - Andiamo.
     Depois que os seus olhos cheios de estrabismo e despeito vêem a lanterninha traseira do Buick desaparecer, Bianca resolve dar um giro pelo bairro. Imaginando cousas. Roendo as unhas. Nervosíssima.
     Logo encontra a Ernestina. Conta tudo à Ernestina.
     - E o Ângelo, Bianca?
     - O Ângelo? O Ângelo é outra cousa. É pra casar.
     - Há!...

Estudo do Texto

01. Identifique os personagens do texto.
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02. Que ruas e lugares de São Paulo são mencionados no conto.
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03. Qual a profissão de Carmela, Bianca e Ângelo?
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04. O “caixa-d’óculos” referido no texto é da mesma classe social dos demais personagens? Justifique.
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05. Antes de Bianca ser abordada pelo “caixa-d’óculos”, já havia interesse de Carmela pelo rapaz? Justifique sua resposta com um trecho do texto.
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06. Caracterize o tratamento de Carmela para com Ângelo.
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07. Carmela pode ser caracterizada como uma moça ingênua pelas suas atitudes no texto? Justifique.
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08. Carmela fica indignada com o convite do rapaz do carro e afirma não ser “dessas”. A que Carmela se refere com o termo “dessas”? A afirmação dela se confirma ao longo do texto?
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09. Identifique no texto palavras ou expressões típicas da oralidade e da linguagem informal.
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10. O que o autor quis dizer com as expressões “é sentinela da companheira” e “namorado de máquina não dá certo mesmo”?
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Respostas:

01. Carmela, Bianca,  o português, Ângelo, o caixa-d’óculos, Giuseppe Santini e Ernestina.

02. Rua Barão de Itapetininga, Casas de Moda, Praça da República, Rua do Arouche, Rua Lopes de Oliveira, Largo de Santa Cecília, Alameda Glette, Rua Viridiana e Jardim América.

03. Carmela e Bianca são costureiras e Ângelo entregador.

04. Não. A referência ao carro, que na época não era um bem acessível a classe trabalhadora indica que ele era alguém de classe social elevada.

05. Sim, ao sair do trabalho Carmela pede a Bianca “Espia se ele está na esquina”.

06. Ela o trata mal, é agressiva e o trata com desprezo.

07. Não era ingênua, pois já desconfiava das intenções do rapaz do carro.
08. “Dessas” refere-se a um tipo de mulher considerada fácil, que se deixa usar pelos homens. Seu comportamento no decorrer do texto desmente essa afirmação quando ela dispensa à amiga e sai sozinha com o rapaz.

09. “Dê o fora”, “Que bruta novidade”, “armo já uma encrenca”, “ficou danado”, “gosta pra burro”, “não vou na onda”, “xi, quanta...”, “ está ficando uma vaca”, “quebro a cara dele, hein?”, “dar um giro”.


10. Que Bianca serve de vigia, de segurança da companheira e que namorado de carro é perigoso.

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O CANTO DO PIAGA, de Gonçalves Dias

    Gonçalves Dias

I
Ó Guerreiros da Taba sagrada,
Ó Guerreiros da Tribo Tupi,
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi.

Esta noite - era a lua já morta -
Anhangá me vedava sonhar;
Eis na horrível caverna, que habito,
Rouca voz começou-me a chamar.

Abro os olhos, inquieto, medroso,
Manitôs! que prodígios que vil
Arde o pau de resina fumosa,
Não fui eu, não fui eu, que o acendi!

Eis rebenta a meus pés um fantasma,
Um fantasma d'imensa extensão;
Liso crânio repousa a meu lado,
Feia cobra se enrosca no chão.

O meu sangue gelou-se nas veias,
Todo inteiro - ossos, carnes - tremi,
Frio horror me coou pelos membros,
Frio vento no rosto senti.

Era feio, medonho, tremendo,
Ó Guerreiros, o espectro que eu vi.
Falam Deuses nos cantos do Piaga,
Ó Guerreiros, meus cantos ouvi!

II
Por que dormes, Ó Piaga divino?
Começou-me a Visão a falar,
Por que dormes? O sacro instrumento
De per si já começa a vibrar.

Tu não viste nos céus um negrume
Toda a face do sol ofuscar;
Não ouviste a coruja, de dia,
Seus estrídulos torva soltar?

Tu não viste dos bosques a coma
Sem aragem - vergar-se e gemer,
Nem a lua de fogo entre nuvens,
Qual em vestes de sangue, nascer?

E tu dormes, ó Piaga divino!
E Anhangá te proíbe sonhar!
E tu dormes, ó Piaga, e não sabes,
E não podes augúrios cantar?!

Ouve o anúncio do horrendo fantasma,
Ouve os sons do fiel Maracá;
Manitôs já fugiram da Taba!
Ó desgraça! Ó ruína! Ó Tupá!

III
Pelas ondas do mar sem limites
Basta selva, sem folhas, i vem;
Hartos troncos, robustos, gigantes;
Vossas matas tais monstros contêm.

Traz embira dos cimos pendente
- Brenha espessa de vário cipó -
Dessas brenhas contêm vossas matas,
Tais e quais, mas com folhas; é só!

Negro monstro os sustenta por baixo,
Brancas asas abrindo ao tufão,
Como um bando de cândidas garças,
Que nos ares pairando - lá vão.

Oh! quem foi das entranhas das águas,
O marinho arcabouço arrancar?
Nossas terras demanda, fareja...
Esse monstro... - o que vem cá buscar?

Não sabeis o que o monstro procura?
Não sabeis a que vem, o que quer?
Vem matar vossos bravos guerreiros,
Vem roubar-vos a filha, a mulher!

Vem trazer-vos crueza, impiedade -
Dons cruéis do cruel Anhangá;
Vem quebrar-vos a maça valente,
Profanar manitôs, maracás.

Vem trazer-vos algemas pesadas,
Com que a tribo Tupi vai gemer;
Hão-de os velhos servirem de escravos
Mesmo o Piaga inda escravo há-de ser!

Fugireis procurando um asilo,
Triste asilo por ínvio sertão;
Anhangá de prazer há-de rir-se,
Vendo os vossos quão poucos serão.


Vossos Deuses, ó Piaga, conjura,
Susta as iras do fero Anhangá.
Manitôs já fugiram da Taba,
Ó desgraça! ó ruína!! ó Tupá!

1. Qual é a temática do texto?
a) A guerra entre nações indígenas.
b) O processo de colonização e a tragédia do povo Tupi.
c) Os perigos existentes nas matas.
d) As maldições em que os índios acreditam.

2. O Piaga era o intermediário entre o mundo sagrado e a tribo. Que verso comprova no poema essa função?
a) “Frio vento no rosto senti”
b) “O meu sangue gelou-se nas veias”
c) “Falam deuses nos cantos do Piaga”
d) “Liso crânio repousa ao meu lado”

3. A segunda parte do poema apresenta os sinais de desgraça que o Piaga não havia percebido. Qual dos itens a seguir não apresenta um desses sinais?
a) um negrume no céu
b) a coruja piar durante o dia
c) a cobra enroscada no chão
d) a lua nascer vermelha

4. Por que o Piaga tinha dificuldades para perceber os sinais de desgraça?
a) Anhangá o impedia de percebê-los.
b) O Piaga estava assustado com o fantasma.
c) Ele foi enfeitiçado por uma cobra.
d) Uma fumaça impedia sua visão.

5. A que se refere à metáfora do verso “basta selva, sem folhas, i vem”?
a) ao lugar onde os índios viviam
b) aos navios portugueses
c) ao lugar de onde vinham os portugueses
d) a Taba sagrada

6. A visão do processo de colonização transmitida pelo poema é
a) um processo de progresso, pouco compreendido pelos nativos.
b) um processo de colonização esperado e harmônico.
c) um processo de colonização necessário e justo de construção de uma civilização.
d) um processo de opressão dos índios e de destruição de sua civilização.

7. O poema lido faz parte da primeira geração da poesia romântica, a chamada geração nacionalista ou indianista. A partir da leitura do poema qual seriam então os propósitos dessa geração?
a) Ressaltar a força e a cultura indígena.
b) A investigação histórica das nossas origens culturais e o repúdio à cultura portuguesa.
c) A valorização da cultura indígena, colocando como superior à cultura portuguesa.
d) A denúncia das injustiças sociais que já existiam antes da chegada dos portugueses.

8. De acordo com o significado das palavras destacadas nos versos, assinale a sequência correta.
(I) “Anhangá me vedava sonhar”
(II) “Manitôs! Que prodígios que vi”
(III) “E não podes augúrios cantar”
(IV) “Profanar manitôs, maracás”
(V) “Vossos Deuses, ó Piaga, conjura

a) impedia, acontecimentos, presságios, desrespeitar, invoca.
b) ordenava, guerreiros, canções, conhecer, reza.
c) proibia, estranhos, notícias, utilizar, procura.
d) levava, inteligências, mensagens, tocar, promete.

Gabarito:
1.b, 2. c, 3. c, 4. a, 5. b, 6. d, 7. b, 8. a


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segunda-feira, 16 de maio de 2016

A ILUSTRE CASA DE RAMIRES, de Eça de Queirós

A ILUSTRE CASA DE RAMIRES
Eça de Queirós
Capítulo X
(Fragmento)

Até noite alta Gonçalo, passeando pelo quarto, remoeu a amarga certeza de que sempre, através de toda a sua vida (quase desde o colégio de S. Fiel!), não cessara de padecer humilhações. E todas lhe resultavam de intentos muito simples, tão seguros para qualquer homem como o voo para qualquer ave - só para ele constantemente rematados por dor, vergonha ou perda! A entrada da vida escolhe com entusiasmo um confidente, um irmão, que traz para a quieta intimidade da Torre - e logo esse homem se apodera ligeiramente do coração de Gracinha e ultrajosamente a abandona! Depois concebe o desejo tão corrente de penetrar na Vida Política - e logo o Acaso o força a que se renda e se acolha à influência desse mesmo homem, agora Autoridade poderosa, por ele durante todos esses anos de despeito tão detestada e chasqueada! Depois abre ao amigo, agora restabelecido na sua convivência, a porta dos Cunhais, confiado na seriedade, no rígido orgulho da irmã - e logo a irmã se abandona ao antigo enganador, sem luta, na primeira tarde em que se encontra com ele na sombra favorável dum caramanchão! Agora pensa em casar com uma mulher que lhe oferecia com uma grande beleza uma grande fortuna - e imediatamente um companheiro de Vila-Clara passa e segreda: - "A mulher que escolheste, Gonçalinho, é uma marafona cheia de amantes!" Decerto essa mulher não a amava com um amor nobre e forte! Mas decidira acomodar nos formosos braços dela, muito confortavelmente, a sua sorte insegura - e eis que logo desaba, com esmagadora pontualidade, a humilhação costumada. Realmente o Destino malhava sobre ele com rancor desmedido!
- E por quê? - murmurava Gonçalo, despindo melancolicamente o casaco. - Em vida tão curta, tanta decepção... Por quê? Pobre de mim!
Caiu no vasto leito como numa sepultura - enterrou a face no travesseiro com um suspiro, um enternecido suspiro de piedade por aquela sua sorte tão contrariada, tão sem socorro. E recordava o presunçoso verso do Videirinha, ainda nessa noite proclamado ao violão:
Velha Casa de Ramires Honra e flor de Portugal!
 Como a flor murchara! Que mesquinha honra! E que contraste o do derradeiro Gonçalo, encolhido no seu buraco de Santa Irenéia, com esses grandes avós Ramires cantados pelo Videirinha - todos eles, se História e Lenda não mentiam, de vidas tão triunfais e sonoras! Não! nem sequer deles herdara a qualidade por todos herdada através dos tempos - a valentia fácil. Seu pai ainda fora o bom Ramires destemido - que na falada desordem da romaria da Riosa avançava com um guarda-sol contra três clavinas engatilhadas. Mas ele... Ali, no segredo do quarto apagado, bem o podia livremente gemer - ele nascera com a falha, a falha de pior desdouro, essa irremediável fraqueza da carne que, irremediavelmente, diante de um perigo, uma ameaça, uma sombra, o forçava a recuar, a fugir... A fugir de um Casco. A fugir dum malandro de suíças louras que, numa estrada e depois numa venda, o insulta sem motivo, para meramente ostentar pimponice e arreganho. Ah vergonhosa carne, tão espantadiça!
E a Alma... Nessa calada treva do quarto bem o podia reconhecer também, gemendo. A mesma fraqueza lhe tolhia a Alma! Era essa fraqueza que o abandonava a qualquer influência, logo por ela levado como folha seca por qualquer sopro. Porque a prima Maria uma tarde adoça os espertos olhos e lhe aconselha por trás do leque que se interesse pela D. Ana - logo ele, fumegando de esperança, ergue sobre o dinheiro e a beleza de D. Ana uma presunçosa torre de ventura e luxo. E a Eleição? essa desgraçada Eleição? Quem o empurrara para a Eleição, e para a reconciliação indecente com o Cavaleiro, e para os desgostos daí emanados? O Gouveia, só com leves argúcias, murmuradas por cima do cache-nez desde a loja do Ramos até a esquina do Correio! Mas quê! mesmo dentro da sua Torre era governado pelo Bento, que superiormente lhe impunha gostos, dietas, passeios, e opiniões e gravatas! - Homem de tal natureza, por mais bem dotado na Inteligência, é massa inerte a que o Mundo constantemente imprime formas várias e contrárias. O João Gouveia fizera dele um candidato servil. O Manuel Duarte poderia fazer dele um beberrão imundo. O Bento facilmente o levaria a atar ao pescoço, em vez duma gravata de seda, uma coleira de couro! Que miséria! E todavia o Homem só vale pela Vontade - só no exercício da Vontade reside o gozo da Vida. Porque se a Vontade bem exercida encontra em torno submissão - então é a delícia do domínio sereno; se encontra em torno resistênciam - então é a delícia maior da luta interessante. Só não sai gozo forte e viril da inércia que se deixa arrastar mudamente, num silêncio e macieza de cera... Mas ele, ele, descendendo de tantos varões famosos pelo Querer - não conservaria, escondida algures no seu Ser, dormente e quente como uma brasa sob cinza, uma parcela dessa energia hereditária?... Talvez! nunca porém nesse peco e encafuado viver de Santa Irenéia a fagulha despertaria, ressaltaria em chama intensa e útil. Não! pobre dele! Mesmo nos movimentos da Alma onde todo o homem realiza a liberdade pura - ele sofreria sempre a opressão da Sorte inimiga!
Com outro suspiro mais se enterrou, se escondeu sob a roupa. Não adormecia, a noite findava - já o relógio de charão, no corredor, batera cavamente as quatro horas. E então, através das pálpebras cerradas, no confuso cansaço de tantas tristezas revolvidas, Gonçalo percebeu, através da treva do quarto, destacando palidamente da treva, faces lentas que passavam...
Eram faces muito antigas, com desusadas barbas ancestrais, com cicatrizes de ferozes ferros, umas ainda flamejando como no fragor de uma batalha, outras sorrindo majestosamente como na pompa duma gala - todas dilatadas pelo uso soberbo de mandar e vencer. E Gonçalo, espreitando por sobre a borda do lençol, reconhecia nessas faces as verídicas feições de velhos Ramires, ou já assim contempladas em denegridos retratos, ou por ele assim concebidas, como concebera as de Tructesindo, em concordância com a rijeza e esplendor dos seus feitos.
Vagarosas, mais vivas, elas cresciam dentre a sombra que latejava espessa e como povoada. E agora os corpos emergiam também, robustíssimos corpos cobertos de saios de malha ferrugenta, apertados por arneses de aço lampejante, embuçados e fuscos mantos de revoltas pregas, cingidos por faustosos gibões de brocado onde cintilavam as pedrarias de colares e cintos - e armados todos, com as armas todas da História, desde a dava goda de raiz de roble eriçada de puas até o espadim de sarau enlaçarotado de seda e ouro.
Sem temor, erguido sobre o travesseiro, Gonçalo não duvidava da realidade maravilhosa! Sim! eram os seus avós Ramires, os seus formidáveis avós históricos, que, das suas tumbas dispersas corriam, se juntavam na velha casa de Santa Irenéia nove vezes secular - e formavam em torno do seu leito, do leito em que ele nascera, como a Assembléia majestosa da sua raça ressurgida. E até mesmo reconhecia alguns dos mais esforçados, que agora, com o repassar constante do Poemeto do tio Duarte e o Videirinha gemendo fielmente o seu "fado", lhe andavam sempre na imaginação...
Aquele além, com o brial branco a que a cruz vermelha enchia o peitoral, era certamente Gutierres Ramires, o d'Ultramar como quando corria da sua tenda para a escalada de Jerusalém. No outro, tão velho e formoso, que estendia o braço, ele adivinhava Egas Ramires, negando acolhida no seu puro solar a El-Rei D. Fernando e à adúltera Leonor! Esse, de crespa barba ruiva, que cantava sacudindo o pendão real de Castela, quem, senão Diogo Ramires, o Trovador ainda na alegria da radiosa manhã de Aljubarrota? Diante da incerta claridade do espelho tremiam as fofas plumas escarlates do monão de Paio Ramires, que se armava para salvar S. Luís Rei de França. Levemente balançado, como pelas ondas humildes dum mar vencido, Rui Ramires sorria às naus inglesas que ante aproa da sua Capitânia submissamente amainavam por Portugal. E, encostado ao poste do leito, Paulo Ramires, pajem do Guião de ElRei nos campos fatais de Alcácer, sem elmo, rota a couraça, inclinava para ele a sua face de donzel, com a doçura grave dum avô enternecido...
Então, por aquela ternura atenta do mais poético dos Ramires, Gonçalo sentiu que a sua Ascendência toda o amava - e da escuridão das tumbas dispersas acudira para o velar e socorrer na sua fraqueza. Com um longo gemido, arrojando a roupa, desafogou, dolorosamente contou aos seus avós ressurgidos a arrenegada Sorte que o combatia e que sobre a sua vida, sem descanso, amontoava tristeza, vergonha e perda! E eis que subitamente um ferro faiscou na treva, com um abafado brado: - "Neto, doce neto, toma a minha lança nunca partida!" E logo o punho duma clara espada lhe roçou o peito, com outra grave voz que o animava: -"Neto, doce neto, toma a espada pura que lidou em Ourique1 E depois uma acha de coriscante gume bateu no travesseiro, ofertada com altiva certeza: - "Que não derribará essa acha, que derribou as portas de Arzila?...”

1. O narrador conta que Gonçalo remoía no quarto as humilhações que passara. Qual dos fatos a seguir não faz parte das humilhações remoídas por Gonçalo?
a) A relação mal sucedida de sua irmã Gracinha com seu confidente, André Cavaleiro.
b) O aparecimento dos Ramires em seu quarto.
c) Ter que submeter-se a influência do ex-confidente ao tentar entrar na vida política.
d) Ser traído pela mulher com quem decidira casar.

2. “Em vida tão curta tanta decepção... Por quê? Pobre de mim!”. Podemos perceber nesse trecho:
a) A expressão de um sentimento de raiva.
b) A expressão de um sentimento de alívio.
c) A expressão de um sentimento de ansiedade.
d) A expressão de um sentimento de pena.

3. Qual é a qualidade hereditária dos Ramires?
a) a inteligência
b) a liderança
c) a valentia
d) a beleza

4. De acordo com o texto, o que é “a realidade maravilhosa”?
a) O sonho, a visão de Gonçalo.
b) As pretensões políticas de Gonçalo.
c) A reconciliação com seu antigo confidente.
d) D. Ana, sua presunçosa torre de ventura e luxo.

5. Ainda de acordo com o texto, os antepassados de Gonçalo ressurgiram para:
a) Cobrar-lhe uma atitude corajosa.
b) Relembrar-lhe do passado glorioso.
c) Dar-lhe força e incentivá-lo.
d) Vigiar-lhe as ações.


Gabarito

1. b , 2. d, 3. c, 4. a,  5. c

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